Além da função utilitária

Nas cidades, não somente o traçado urbano e as edificações devem ser planejados com respeito à história, tradição e características locais, mas também é fundamental considerar os equipamentos de instalação urbana. Elementos como postes de iluminação, bancos de rua e entradas de metrô precisam ser concebidos como mais do que simples estruturas utilitárias. Enquanto nos dias correntes a funcionalidade tende a ser priorizada muitas vezes em detrimento da estética, em épocas passadas, a beleza ocupava uma posição de destaque na concepção desses elementos urbanos. Basta percorrer as ruas das cidades modernas para observar a diferença: estruturas contemporâneas, muitas vezes desprovidas de detalhes, projetadas com linhas mínimas e despojadas de adornos e, acima de tudo, de beleza.

 

Fig. 1: Bancos High Line Park, em Nova York | Fonte: Landscape Performance Series

 

Por outro lado, se passearmos por cidades históricas, veremos que, em tempos passados, esses elementos eram projetados não apenas com vistas à sua funcionalidade, mas também à sua capacidade de transmitir beleza e valor estético às cidades, afinal de contas, eles representavam a experiência coletiva dos cidadãos. Roger Scruton, em sua defesa pela importância da beleza na vida cotidiana, salienta que “a beleza é um convite à contemplação”, ressaltando que a estética urbana influencia diretamente o sentimento de pertencimento e o bem-estar comunitário. É através dessas estruturas que se cria uma conexão entre o espaço e seus habitantes, transformando simples objetos funcionais em parte integrante da identidade urbana. Temos um exemplo icônico disso: a famosa cabine telefônica de Londres.


Fig. 2: Cabine Telefônica de Londres | Fonte: Pexels

 

Francis D.K. Ching, em Arquitetura: Forma, Espaço e Ordem, explora a importância de considerar o design como um meio de agregar camadas de significado e expressão. Para Ching, os elementos do ambiente construído devem ser pensados não apenas em termos de sua utilidade, mas como componentes de um discurso visual que enriquece a paisagem urbana e a torna convidativa, tal como ele diz no trecho:

 

A arquitetura vai além de sua função prática; é uma arte que molda a experiência humana, promovendo uma interação significativa entre o espaço e aqueles que o habitam. Elementos projetados com atenção estética e propósito reforçam a percepção de ordem e harmonia, transformando o ambiente em um lugar que inspira e acolhe.

Os equipamentos de instalação urbana tradicionais exemplificam essa premissa, pois eram projetados com detalhes que evocavam referências históricas e culturais, contribuindo para uma estética que celebrava tanto o presente quanto a herança do passado. Em contraste, nos dias atuais, a busca pela funcionalidade e a redução de custos muitas vezes relegam a beleza a um segundo plano, resultando em estruturas que carecem de identidade e valor artístico.

No entanto, durante séculos passados, a relação entre beleza e funcionalidade era tratada de forma indissociável. Arquitetos e designers pareciam ver o potencial de cada detalhe urbano como uma oportunidade de elevação estética e cultural. A escolha dos materiais, a forma dos ornamentos e a proporção das estruturas eram deliberadamente pensadas para integrar a função com o que era bom e belo. Ao observar elementos como os bancos de Antoni Gaudí no Parc Güell ou as entradas de metrô de Hector Guimard em Paris, torna-se evidente que os equipamentos urbanos de eras anteriores não apenas atendiam a uma necessidade prática, mas também refletiam a filosofia de que a beleza é um bem público e essencial para a elevação da sociedade e a vida em comunidade.

Fig. 3: Bancos do Parc Guell, em Barcelona | Fonte: Ignacio Brosa (Unsplash)

Cabines Telefônicas: Símbolos de História e Elegância

 

As cabines telefônicas de Londres, projetadas pelo arquiteto Sir Giles Gilbert Scott, transcendem sua função original para se tornarem ícones culturais e até mesmo atrações turísticas. Criadas na década de 1920, cada cabine é composta de estrutura que combina simetria, proporção e cor vibrante, destacando-se no cenário da cidade. Hoje, embora em desuso e cada vez em menor número, essas cabines são preservadas como símbolos de resistência à padronização e ao desaparecimento da beleza em elementos cotidianos.

Fig. 4: Cabine Telefônica de Londres | Fonte: Unsplash

Postes de Iluminação: Iluminando a História e o Espaço

 

A iluminação pública tem sido uma parte essencial das cidades desde que Paris, em 1667, se tornou a primeira cidade a iluminar suas ruas com lâmpadas de óleo. No entanto, foi no século XIX que o design dos postes se tornou mais elaborado, especialmente com Gabriel-Jean-Antoine Davioud, que projetou postes de ferro fundido decorados em estilo Haussmaniano. Os postes parisienses apresentam elementos neoclássicos e Art Nouveau, como volutas, folhas de acanto e figuras mitológicas, que embelezam a cidade ao mesmo tempo em que servem à sua função primordial. Esse cuidado com a beleza e atenção aos detalhes ilustra o que Aristóteles afirmava:

A beleza é a melhor carta de recomendação; ela está na ordem, na simetria e na definição, que são elementos de máxima importância.

Fig. 5: Postes iluminando a Pont George V em Paris | Fonte: Unsplash

Bancos de Rua: Espaços de Convívio e Contemplação

 

Os bancos do Parc Güell, projetados por Antoni Gaudí, são um testemunho da visão de um arquiteto que via beleza e funcionalidade como inseparáveis. Gaudí acreditava que a natureza era o modelo perfeito de design, e isso é evidente nos bancos em mosaico (feito com peças cerâmicas reaproveitadas), no qual cada curva e detalhe serve para acomodar confortavelmente os visitantes enquanto os conecta à paisagem circundante.

Fig. 6: Bancos do Parc Guell, em Barcelona | Fonte: Unsplash

 

Além dos famosos bancos do Parc Güell, Barcelona é lar de outros exemplos magníficos de mobiliário urbano em estilo Art Nouveau, muitos dos quais foram projetados por arquitetos e designers que contribuíram para a transformação estética da cidade no final do século XIX e início do século XX. Um exemplo notável são os bancos do Passeig de Gràcia, desenhados por Antoni Gaudí e Josep Maria Jujol.

 

Fig. 7: Banco e Poste de Luz, no Passeig de Gràcia, em Barcelona | Fonte: BCN Mágica

Essas estruturas, que fazem parte do conjunto de elementos da reforma urbana empreendida por Ildefonso Cerdà, exemplificam a integração de funcionalidade e beleza que caracterizam a abordagem do movimento catalão. Os bancos, feitos de pedra e ferro forjado, apresentam detalhes curvilíneos e ornamentos inspirados na natureza, refletindo a influência de formas orgânicas que é central no estilo Art Nouveau. Essa atenção ao detalhe e ao design transforma um simples local de descanso em uma peça artística que dialoga com o entorno urbano, destacando a importância de considerar a estética em cada componente da paisagem urbana para enriquecer a experiência coletiva e manter viva a conexão com a cultura local.

Portais para o subterrâneo

 

Quando Hector Guimard projetou as entradas de metrô de Paris no início do século XX, ele estava em sintonia com o estilo Art Nouveau, que propunha que a beleza deveria permear todos os aspectos da vida, do mais grandioso ao mais banal. As entradas de Guimard são caracterizadas por suas linhas sinuosas, imitando formas vegetais, e são frequentemente adornadas com detalhes em ferro e vidro. Essas estruturas elevam a experiência de entrar no metrô a um ritual de passagem artístico e poético, um contraste marcante com a estética funcionalista que dominaria o século XX.

Fig. 8: Entrada de Metrô em Paris (Rue des Abesses)| Fonte: The Earful Tower

Além do armazenamento de água

Outro exemplo emblemático é a Torre de Água de Chicago, construída em 1869 por William W. Boyington. Esta estrutura neogótica, feita de calcário, foi projetada para parecer uma fortaleza medieval, o que contrasta dramaticamente com a funcionalidade pragmática de armazenar água.

Fig. 9: Croqui da Torre de Água de Chicago e Estação de Bombeamento | Fonte: Wikipedia

 

Sobrevivendo ao Grande Incêndio de Chicago em 1871, a torre tornou-se um símbolo da resiliência da cidade e demonstra como a preocupação com a estética pode tornar uma estrutura utilitária em um marco urbano de significado histórico e visual. Como mencionado por Gombrich:

 

Não há dúvida de que, para os antigos mestres, a beleza não era um luxo supérfluo, mas uma necessidade essencial para a alma humana.


Fig. 10: Torre de Água de Chicago | Fonte: Pexels

Reflexão Final: Beleza e Tradição como Alicerces

 

A presença de equipamentos urbanos que refletem beleza e tradição é um testemunho vivo do que os antigos arquitetos greco-romanos já defendiam: a beleza não é um mero adorno, mas uma necessidade essencial. Como argumenta Roger Scruton:

 

A perda do apreço pela beleza tem consequências não apenas estéticas, mas morais e sociais, pois viver em meio ao feio desvaloriza o espírito humano.

 

A beleza transforma uma cidade em um espaço que transcende o simples habitat, tornando-se um lugar com o qual as pessoas se identificam, se integram e, por fim, amam. Nos equipamentos utilitários, ela representa um convite ao cuidado, nutrindo carinho e respeito por onde vivemos. Esses elementos despertam a contemplação, promovem um diálogo com o passado e celebram o que é perene e belo na arquitetura, reforçando a conexão emocional entre a comunidade e o espaço compartilhado.

 

Quando os equipamentos urbanos se limitam a cumprir somente suas funções básicas, as cidades se tornam frias e desumanizadas. Como observa Alain de Botton:

Nós nos moldamos pelas imagens que vemos ao nosso redor […] Elas nos falam de ordem e caos, simpatia e hostilidade, indiferença e atenção, felicidade e tristeza.


A verdadeira beleza em equipamentos urbanos nos ensina que o cuidado e o amor por uma cidade começam nos detalhes que evocam pertencimento e respeito. Ela inspira os cidadãos a enxergarem esse espaço como uma extensão de si mesmos, despertando o desejo de proteger e preservar o que é belo. Quando a arquitetura e os elementos urbanos refletem cuidado e estética, a cidade deixa de ser apenas um cenário funcional e se transforma em um lar que acolhe, inspira e enriquece a vida de todos que nela habitam.

Referências:

1. SCRUTON, Roger.  A Alma do Mundo. São Paulo: É Realizações, 2016.

2. CHING, Francis D. K.  Arquitetura: Forma, Espaço e Ordem. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

3. ARISTÓTELES.  Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2013. 

4. GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012.

5. SCRUTON, Roger.  A Alma do Mundo. São Paulo: É Realizações, 2016.

6. BOTTON, Alain de.  A Arquitetura da Felicidade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2007. 

Revisão do artigo: Camila Bernardino | Edição do artigo: Robertha Silveira

Sobre o autor:

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Robertha Silveira

Robertha Silveira formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e iniciou sua carreira em escritórios do estado, onde desenvolveu projetos de urbanismo para incorporadoras regionais. Sempre em busca de uma compreensão mais profunda do ser humano e da sua interação com os espaços, ela ampliou seus estudos após a graduação, nas áreas de filosofia e religiões. Nos últimos anos, Robertha tem gerenciado seu próprio escritório, integrando esses conhecimentos ao resgate de uma arquitetura mais tradicional e perene, refletindo também um resgate de valores essenciais para a vida. Em sua jornada, compartilha suas experiências em seu Instagram (@roberthasilveira). Além disso, como membro do departamento de conteúdo do IBAT, contribui para a divulgação e o incentivo da arquitetura tradicional.