O artigo abaixo, originalmente publicado em francês no site Le Soir, é de autoria de Nadia Everard, presidente da La Table Ronde de l’Architecture, uma associação sem fins lucrativos sediada em Bruges, na Bélgica, dedicada à defesa e ao ensino da arquitetura tradicional. O artigo discorre sobre os desafios atuais enfrentados no campo da arquitetura, tanto no âmbito profissional, quanto acadêmico.
Ao mencionar a degradação no ensino e no ofício da arquitetura, Nadia ressalta as iniciativas de cursos e escolas de verão que têm surgido em várias partes da Europa e do mundo como resposta à uniformização e à mecanização da arquitetura. Organizados por associações e institutos independentes, as escolas de verão têm resgatando princípios clássicos de projeto por meio de workshops, palestras, visitas guiadas e oficinas que buscam valorizar a arquitetura tradicional e as técnicas de construção manuais e artesanato.
Um dos propósitos do Instituto Brasileiro de Arquitetura Tradicional (IBAT) é também disponibilizar programas de escolas de verão a partir de dezembro de 2024. Essa iniciativa visa capacitar estudantes e arquitetos brasileiros na promoção de uma arquitetura humanizada, que tem seu fundamento em princípios que respeitem as tradições e características locais.
Departamento de Conteúdo | IBAT
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As escolas de verão em prol do resgate do ensino da arquitetura | Por Nadia Everard
Com a desintegração do ensino superior de arquitetura, os cursos universitários de verão se multiplicam como soluções alternativas para um setor em crise. O diploma universitário segue a dura lei da oferta e da procura: quanto mais oferta, mais se desvaloriza. O estudo da arquitetura não foge a essa regra: em Bruxelas a taxa de saída para o emprego de jovens formados em um mestrado em Arquitetura é de 67,4%, um dos piores resultados do ranking Actiris. Isso significa que depois de obter um diploma de arquitetura, cerca de um a cada três jovens se registra como desempregado. O relatório Actiris acrescenta: “as áreas de estudo de nível de mestrado que contam com maior número de jovens de Bruxelas que abandonam a escola e se matriculam no Actiris são a arquitetura e urbanismo e a construção”, à frente de outras áreas como história, letras e artes visuais.
Essa crise na educação arquitetônica pode ser explicada de duas maneiras. Há primeiro um problema quantitativo, que surge nas universidades em geral, uma vez que acolhem atualmente quase 30% da população belga com 20 anos ou mais. Tal proporção excede largamente as necessidades reais da economia e se fundamenta numa crença, de certas categorias e classes sociais, de que a universidade é um rito obrigatório para o acesso à vida profissional e ao prestígio socioeconômico. Lamentavelmente, essa crença levou ao abandono das profissões manuais por parte da classe média, ainda que sejam por muitas vezes mais bem remuneradas e, em muitos casos, mais gratificantes que as profissões intelectuais.
Contudo, essa crise na arquitetura repousa igualmente sobre um déficit qualitativo na educação. O curso de arquitetura (todas as faculdades combinadas) desvalorizou, pois o atual ensino dessa disciplina abandonou o rigor da pedagogia clássica e o aprendizado da linguagem arquitetônica tradicional em favor do modernismo desconstrutivista. Este último leva os estudantes a desconfiarem das tradições e do passado, o que empurra a arquitetura para um grau muito elevado de abstração, a uma simplificação das formas e a um divórcio do artesanato manual e do saber-fazer local. Ignorando a linguagem multissecular da arquitetura tradicional, os arquitetos são inevitavelmente conduzidos a uma arquitetura abreviada, empobrecida e perfeitamente conforme (uníssona).
Em breve, o próprio arquiteto não será mais necessário para reproduzir ad aeternum essas “unidades habitacionais de tamanho uniforme” – citando o pai do modernismo, francês Le Corbusier – pois a máquina será capaz de realizar essa tarefa repetitiva. De fato, numa nota de pesquisa publicada em março de 2023, a instituição financeira Goldman Sachs assinala que a profissão de arquiteto está entre as mais expostas ao risco de substituição pela inteligência artificial, logo depois dos cargos de escritório e dos cargos administrativos.
À prova da robotização
A universidade só pode culpar a si mesma. Ao renunciar a um ensino de qualidade, condenou gerações de arquitetos, já difíceis de empregar, a serem substituídos pela robotização. Para enfrentar essa crise, o mundo da arquitetura está a se reorganizar. Durante quase dez anos, iniciativas privadas para universidades de verão de arquitetura têm surgido por toda a Europa: em Bruges, Utrecht, Cambridge, na Espanha, Portugal, Austrália e Marrocos, pequenos grupos de quinze a trinta alunos selecionados mediante inscrição, de todos os países e de todas as origens, aprendem sobre uma arquitetura ancorada na história e na filosofia, baseada na utilização de materiais naturais auxiliados por recursos de trabalhos artesanais. Eles possuem a mesma ambição que as primeiras universidades fundadas no Ocidente medieval: conservar as conquistas das civilizações passadas e contribuir para o progresso físico, intelectual e moral da sociedade.
Diante da deterioração dos estudos universitários de arquitetura, esses cursos de verão apostam na qualidade: desenho à mão livre, levantamentos, geometria tradicional, oficinas de construção, estudo de campo e intensas sessões com debates e discussões fazem parte do programa de estudos. Embora esses cursos de formação nem sempre sejam qualificativos (por não possuírem uma certificação acadêmica), têm a vantagem de preparar os jovens para os aspectos práticos da profissão e de lhes conferir competências que jamais poderão ser substituídas por software. Esta é a chave para se integrar no mercado de trabalho e é um modelo no qual as universidades devem se inspirar se pretendem continuar fecundas.
Tradução: Bruno Minchilo | Revisão: Camila Bernardino | Edição: Giseli Souza; Bruno Minchilo.