Reflexões sobre a construção de uma identidade nacional

Desde o início do século XX, arquitetos, artistas e intelectuais brasileiros se debatem sobre o tema da identidade nacional. Dentro dessa discussão encontra-se a busca por estabelecer o que seria a “verdadeira arquitetura brasileira”, uma produção que refletiria nossa cultura, nossa identidade. Este pequeno texto, tem como objetivo apontar alguns dos principais pontos relacionados a essa busca e propor uma reflexão sobre o processo de construção do que seria a imagem da arquitetura nacional.

A discussão relacionada à identidade nacional surge com o movimento nacionalista, por volta de 1910, em vários países americanos, ex-colônias europeias, e pretendia descobrir ou construir a identidade e a cultura de cada país. No campo da arquitetura, esse desejo deu origem ao Movimento Neocolonial, uma reação à produção eclética que tinha como referência as arquiteturas europeias de períodos históricos anteriores e, portanto, inadequada à formação de uma identidade nacional[1]. No Brasil, o Neocolonial propunha a retomada da linguagem do período colonial, vista como a verdadeira arquitetura brasileira.

Entre as décadas de 1910 e 1930, esse movimento contribuiu para o discurso nacionalista e alcançou certa repercussão[2]. Seus defensores estavam dedicados a resolver o que consideravam uma crise de identidade causada pela interrupção, no século XIX, de uma tradição arquitetônica brasileira. Essa tradição teria se iniciado a partir da adaptação dos modelos construtivos portugueses no Brasil, tendo seu apogeu no início do século XVIII, sendo interrompida com a chegada dos artistas franceses, na chamada Missão Francesa, em 1816, e com a fundação da Escola de Belas Artes. Portanto, nessa visão, a produção arquitetônica do século XIX era considerada uma mistura de estilos europeus, um modismo falso, impuro, sem relação com a história nacional e que gerava uma paisagem urbana confusa e desordenada, estranha à tradição local. O Neocolonial era visto como a solução para a crise do presente por meio da transmissão da tradição[3].

Na Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrida em São Paulo, os artistas modernistas expuseram suas obras de pintura, escultura, música, literatura e arquitetura. Naquele momento, o Neocolonial era considerado a linguagem mais moderna e em acordo com o desejo de identificação e valorização da cultura brasileira[4]. No âmbito da arquitetura, apenas em 1930 se dá o início da discussão modernista. No Brasil, diferentemente do que aconteceu nos países europeus, o Modernismo entra no debate a respeito da identidade nacional e da preservação do patrimônio brasileiro. Neste sentido, Neocolonial e Modernismo convergem: ambos defendem a importância da produção colonial, mas divergem na forma como deveria ser preservada e valorizada e em relação à produção contemporânea da verdadeira arquitetura brasileira.

Com a divulgação do Modernismo e o estabelecimento de uma hegemonia desse discurso dentro das escolas de arquitetura e do Estado brasileiro, mediante a presença de modernistas em cargos de importância em instituições como o SPHAN, vemos um processo de valorização do período colonial e um apagamento da arquitetura produzida ao longo do século XIX[5]. Esse processo, encabeçado por Lucio Costa, ex-neocolonial e principal teórico do modernismo no Brasil, levou à preservação de importantes conjuntos históricos do período colonial, como Ouro Preto, e a uma descaracterização ou mesmo destruição de diversos exemplares do século XIX. Um exemplo de descaracterização é o caso do atual Cine Vila Rica, em Ouro Preto, antigo Liceu de Artes e Ofícios, arquitetura eclética que foi descaracterizada através da retirada de platibanda e outros elementos de gosto oitocentista para receber uma fachada mais colonial e melhor se adequar à paisagem que se queria construir no conjunto arquitetônico histórico mais importante do país.

Fig. 1: Antigo Liceu de Artes e Ofícios de Ouro Preto em estilo eclético | Foto: Arquivo Público Mineiro SIAAMP
Fig. 2: Atual Cine Vila Rica, antigo Liceu, após sua descaracterização com a retirada da platibanda e outros ornamentos característicos do ecletismo | Foto: Patrícia Junqueira

Exemplo de destruição empreendida pelos modernistas à produção eclética nacional foi a demolição do Palácio Monroe, Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional de 1904, nos Estados Unidos. O pavilhão foi desmontado após o fim do evento e remontado no Rio de Janeiro, na Cinelândia, próximo de outros importantes exemplares ecléticos como a Biblioteca Nacional e o Theatro Municipal. A elegante edificação foi demolida com o apoio de Lucio Costa e com a justificativa de que atrapalhava o trânsito da capital carioca, na década de 1970. Alegação completamente descabida e sem comprovação.

Fig. 3: Palácio Monroe, 1910. Marc Ferrez. Disponível em: Coleção Gilberto Ferrez | Foto: Acervo Instituto Moreira Salles

O ecletismo e o século XIX foram sendo apagados ao longo do século XX e sua retomada como tema de pesquisa se deu apenas na década de 1980[6]. O discurso do Neocolonial e do Modernismo sobre a valorização da arquitetura nacional era dirigido apenas à produção anterior ao século XIX, como se esse período da história brasileira não fizesse parte da construção de nossa identidade, quando, na verdade, foi um século extremamente importante, com a chegada da corte portuguesa, em 1808, a Independência do Brasil, em 1822, o processo de extinção da escravidão que culminou com a Abolição, em 1888, e a República, em 1889. Esse foi, como se pode perceber, um século muito importante e a arquitetura, como reflexo das modificações sociais, econômicas e políticas, é o símbolo dessa época.

A construção de uma identidade nacional, proposta nas décadas de 1920 e 1930, foi se desenvolvendo e ganhando forma no decorrer das décadas seguintes, consolidando-se dentro das escolas de arquitetura e sendo divulgada através das ações dos órgãos de preservação do patrimônio. Esse processo levou à destruição de parte do acervo arquitetônico produzido no século XIX em prol da construção de uma identidade considerada mais brasileira, com base na produção do período colonial. A historiografia da arquitetura brasileira se dedicou a momentos específicos construindo uma interpretação que, como afirma Marcelo Puppi, pretendia valorizar determinados períodos históricos reforçando uma interpretação nacionalista do conjunto arquitetônico brasileiro.

Esse breve relato tem como objetivo instigar o leitor a refletir sobre a imagem que se construiu da arquitetura nacional no século XX. É preciso questionar-se se existe, de fato, uma linguagem que possa ser considerada como a verdadeira arquitetura brasileira. Não seria mais adequado perguntar: como são as arquiteturas brasileiras? 

[1] KESSEL, Carlos. Estilo, Discurso, Poder: arquitetura neocolonial no Brasil. In: Revista História Social, nº 06, pp. 65 – 94, 1999.

[2] SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo: EDUSP, 1997.

[3] NATAL, Caion Meneguello. A Arquitetura Neocolonial de Ricardo Severo e José Marianno. In: Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, vol. 26, nº. 38, 2019, pp. 86-123. 

[4] KESSEL, Carlos. Vanguarda efêmera: arquitetura neocolonial na Semana de Arte Moderna de 1922. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 30,2002, p. 110-128. 

[5] PUPPI, Marcelo. Por uma história não moderna da arquitetura brasileira: questões de historiografia. Campinas: UNICAMP, 1998. 

[6] FABRIS, Annateresa (org.) Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Nobel, 1987.

Revisão do artigo: Camila Bernardino | Edição do artigo: Bruno Minchilo

Sobre o autor:

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Patricia Junqueira

Arquitetura e Urbanista, Doutora em Arquitetura e Urbaismo pelo NPGAU/UFMG. Professora Adjunta do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto. Pesquisadora na área de História e Teoria da Arquitetura e do Urbanismo.