Fundamentos do método Beaux-Arts
As primeiras décadas do século XX são geralmente identificadas na literatura especializada e mesmo no imaginário coletivo com a ascensão do modernismo. No entanto, elas testemunharam ainda a predominância das arquiteturas tradicionais. O método de composição acadêmico, também conhecido como Beaux-Arts, era o instrumento incontornável de qualquer arquiteto, cidade ou país, do Brasil à China,[1] que pretendesse aceder ao prestígio da cultura ocidental. Era o sistema mais completo e sofisticado para organizar um espaço monumental e, dentro dele, a implantação e hierarquia relativa de cada edifício.
A combinação de três características de projeto distingue o método Beaux-Arts[2] de outras práticas codificadas de produção da arquitetura:
- o emprego consciencioso de medidas proporcionais, misto de razão lógica e respeito à tradição;
- a expressão da verdade em arquitetura, enquanto retrato não apenas da construção, mas do caráter do edifício como um todo;
- a consciente inserção do edifício no tecido urbano e no contexto regional, levando em consideração as características da vizinhança, do clima e dos costumes. Esta última característica é o tema deste artigo.
As teorias mais antigas da arquitetura clássica abordavam sobretudo a primeira característica. Elas consideravam uma gama mais simples de tipos edilícios — via de regra templos versus casas da elite — e não reconheciam particularidades de caráter, clima ou cultura. Vitrúvio[3] não previa a possibilidade de ajustar o desenho de um templo ao contexto local, e os edifícios importantes no Império romano eram muitas vezes isolados por um muro. Para o arquiteto renascentista Andrea Palladio[4] (fig. 1), uma fachada podia — e devia — ser composta livremente sem a preocupação de expressar a “verdade” da construção ou da composição de interiores.
O método acadêmico dependia, para alcançar a sua plenitude, do respeito a um contrato social implícito, misto de autoridade tradicional e civilidade democrática onde cada agente da construção da cidade aderia ao método. Era um sistema altamente elaborado, coerente e capaz de orientar o cidadão tanto na topografia prática da cidade quanto nos seus significados simbólicos.
O fundamento do método Beaux-Arts foi refinado nos tratados didáticos da segunda metade do século XIX, pelos quais estudaram todos os arquitetos de renome no início do século XX, e principalmente na síntese das sínteses, os Elementos e teoria da arquitetura, do professor da Escola de Belas-Artes de Paris, Julien Guadet (1834–1908, fig. 2). Em quatro volumes publicados entre 1901 e 1903, com base em cursos ministrados desde 1894, esta obra reunia todo o conhecimento que vinha sendo elaborado pela Academia de Arquitetura na França desde o século XVII. O manual de Guadet oferecia ao futuro arquiteto um instrumental eficiente e sistematizado para produzir uma arquitetura que se inserisse na ordem da cidade tradicional. Essa ordem se baseava em diferenciar, na forma e na implantação urbana, a arquitetura cívica e religiosa daquela particular e utilitária, conforme aponta Léon Krier [5], arquiteto crítico da arquitetura modernista e defensor da Nova Arquitetura Clássica e do Novo Urbanismo.
No entanto, os manifestos do Modernismo, que não se decidiam entre a uniformidade maquinista e a expressão da individualidade sem limites, tentaram tachar o método Beaux-Arts de anacrônico e inadequado ao pleno florescimento do capitalismo industrial. O argumento contra o Beaux-Arts se baseava, em parte, na mentira propalada por Le Corbusier[6] de que o seu ensinamento se limitava a propor um estilo decorativo padronizado e superficial. Nessa argumentação, ironicamente, eram os modernistas que se prendiam à questão do estilo. Um dos temas onde se realizava toda a riqueza teórica do método Beaux-Arts, muito além do estilo, era a relação da arquitetura monumental com o tecido urbano.
Monumental e utilitário
A necessidade de diferenciar edifícios monumentais da arquitetura privada era um problema crítico na composição tradicional. Graças a essa diferenciação, as pessoas podiam se orientar na cidade e identificar os lugares coletivamente mais relevantes — transporte coletivo, locais de culto, serviços públicos — enquanto os destinos privados — moradia e trabalho — formavam um fundo discreto, porém com uma suave variedade individual (fig. 3). Era uma questão de civilidade, ou seja, a própria essência da cidade (civitas). Como numa das Cidades invisíveis de Italo Calvino[7], “se um edifício não leva nenhuma insígnia ou figura, a própria forma deste e o local que ocupa na ordem da cidade já bastam para indicar a sua função.” Em contraste, o moderno “zoneamento funcionalista” e a proposta corbusiana de blocos residenciais e de escritórios monumentais, porém totalmente uniformes, não conseguia dar conta dessa orientação no espaço.
Nos primeiros anos do século XX, auge da arquitetura Beaux-Arts, já se anunciava o debate entre o tradicional caráter cívico da monumentalidade e a rejeição pura e simples da expressão monumental, presente no discurso modernista. Os manifestos modernistas das décadas de 1910 e 20, na sua exaltação da uniformidade, eram úteis a regimes totalitários ou a tecnocracias industriais. Pelo contrário, a tradição acadêmica celebrava a monumentalidade e a hierarquia formal como representações da ordem necessária ao florescimento da democracia e do liberalismo. Segundo Arthur Drexler[8]:
A antiga arquitetura definia a si própria como o projeto de edifícios públicos que, para o bem comum, naturalmente deviam ser grandiosos. A nova arquitetura já se definia como o projeto de tudo no ambiente construído — “arquitetura total” no dizer alarmante de Walter Gropius — mas via a grandiosidade apenas como instrumento de opressão.
A teoria hegemônica na École des Beaux-Arts de fato dava uma ênfase excessiva à arquitetura monumental, em prejuízo da construção utilitária de grande porte, motivo pelo qual esta última viria a ser dominada pelos engenheiros. Durante a maior parte do século XIX, salvo raras exceções, tanto os programas para o Grande Prêmio (fig. 4), honra máxima conferida aos alunos da escola, quanto as obras aclamadas nos Salons de Belas-Artes, pertenciam ao registro monumental, e eram devidamente resolvidas na expressão monumental a mais elaborada possível. O historiador da arquitetura Donald Drew Egbert[9] (1902–1973) explica a situação da arquitetura monumental na visão de mundo acadêmica:
[A École des Beaux-Arts] continuava a acreditar que a arquitetura “monumental” era inevitavelmente a mais alta expressão da arquitetura, e que uma arquitetura verdadeiramente monumental só podia ser construída em alvenaria, em particular cantaria de pedra. Mais ainda, sob a influência do idealismo neoplatônico, juntamente com o realismo filosófico aristotélico, arquitetos tributários da visão acadêmica continuavam a acreditar numa hierarquia de programas arquitetônicos. Aqueles que lidavam com edifícios monumentais para o rei e o Estado, inclusive aqueles para a religião de Estado, se aproximavam mais do ideal platônico.
Mesmo assim, seria um engano pensar que os arquitetos acadêmicos se preocupavam com a monumentalidade a ponto de praticamente excluir o restante do universo arquitetônico. Olhando além dos Grandes Prêmios, há uma diversidade muito maior nos concursos pequenos que formavam de certo modo o tronco curricular de ensino de projeto na École. Annie Jacques[10] aponta que, se a arquitetura monumental era objeto de maior admiração e esmero no sistema, isso não se devia a uma omissão de outros programas, mas a uma clara noção de hierarquia entre os diferentes concursos e seus programas.[11] A hierarquia não implicava uma atenção exclusiva ao monumental: pelo contrário, os programas utilitários (fig. 5) eram muito mais frequentes e acessíveis a uma parcela maior do corpo discente do que o Grande Prêmio.
Conclusão
Ao redigir um sistema teórico unificado, o professor da Escola de Belas-Artes de Paris Guadet não apenas sintetizou a história da arquitetura acadêmica, como também as regras que seriam seguidas nos últimos e apoteóticos anos do método Beaux-Arts, quando estava conquistando o mundo nas exposições universais de Chicago, Paris e Saint Louis. O manual de Guadet serviu de inspiração para outros, como o The Study of Architectural Design do americano John Harbeson e o Teoria e filosofia da arquitetura do brasileiro Adolfo Morales de los Rios Filho, professor na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.
O método Beaux-Arts considerava a arquitetura monumental apenas como a expressão maior de uma gama de tipologias ao alcance do arquiteto. De modo algum a preocupação única do arquiteto, a monumentalidade fazia parte de uma hierarquia do caráter arquitetônico, sendo reservada apenas às mais altas realizações da sociedade.
[1] Ana Cavalcanti, Marize Malta, e Sonia Gomes Pereira, orgs., Modelos na arte: ensinos, práticas e crítica: 200 anos da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, 1º ed (Rio de Janeiro: Nau, 2017); Jeffrey W Cody, Nancy S Steinhardt, e Tony Atkin, orgs., Chinese Architecture and the Beaux-Arts (Honolulu : [Hong Kong]: Hawai’i University Press : Hong Kong University Press, 2011).
[2] Isabelle Gournay, “Beaux-Arts Style”, em Dictionary of Art, org. Jane Turner (New York: Grove’s Dictionaries, 1996) enfatiza o fato de que o sistema Beaux-Arts era mais método do que um estilo.
[3]Tratado de arquitectura, trad. M. Justino Maciel (Lisboa: IST Press, 2006). | Nota: Embora os tratadistas clássicos, como Vitrúvio, tenham discutido aspectos como orientação solar, influência dos ventos e variações sazonais em suas obras, a profundidade da análise do clima e a sua repercursão nas obras não é tão abrangente, refletindo a ênfase principal em outros aspectos do design arquitetônico, engenharia e construção.
[4]I quattro libri dell’architettura (Venezia: Dominico de’ Franceschi, 1570), https://archive.org/details/qvattrolibridel00pall/.
[5] Architecture : choix ou fatalité (Paris: Norma, 1996), 31.
[6]Por uma arquitetura (São Paulo: Perspectiva, 1977).
[7]Le città invisibili (Milano: Mondadori, 1993), 13–14.
[8] “Preface and Acknowledgments”, em The Architecture of the Ecole des Beaux-Arts, org. Arthur Drexler (London: Secker & Warburg, 1977), 7.
[9] The Beaux-Arts Tradition in French Architecture (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1980), 42.
[10] “The Programmes of the Architectural Section of the École Des Beaux-Arts, 1819–1914”, em The Beaux-Arts and Nineteenth-Century French Architecture, org. Robin Middleton (London: Thames & Hudson, 1982).
[11] Jacques, 65.