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No kit de ferramentas da arquitetura de todas as épocas e estilos, existem três instrumentos para diferenciar a arquitetura monumental do tecido urbano corrente: o decoro, a separação física e a diferenciação de forma.
O que Vitrúvio[1] chama de decoro é “o aspecto da obra sem falhas, composta com a devida autoridade por meio de elementos adequados”. Sem falhas, porque o esmero no projeto e na execução deveria ser proporcional à importância do edifício; com a devida autoridade, porque a grandiosidade era a expressão correta do nível hierárquico da instituição que abrigava; e de elementos adequados, pois que o caráter excepcional estaria evidente não apenas na perfeição e riqueza do projeto, mas também no uso de elementos decorativos apropriados ao caráter e importância de cada edifício (fig. 1). O modernismo rejeitava, como é bem sabido, a decoração e, por extensão, o próprio conceito de decoro. John Summerson (1904–1992), antes de ser conhecido como um dos maiores estudiosos da arquitetura clássica no século XX, quando ainda um modernista militante, achava que inclusive arquitetos como Walter Gropius e Le Corbusier não iam longe o suficiente na eliminação do decoro monumental![2]
A segunda ferramenta para explicitar a monumentalidade é, segundo Alexander Tzonis e Liane Lefaivre[3], o temenos, no sentido clássico de um recinto delimitado dentro do qual tudo deve ser perfeito; por extensão, a divisa — um muro ou um espaço aberto — que separa um local importante do tecido urbano à sua volta. Em suma, é a prática de se isolar o edifício monumental, que deixa de pertencer a uma parcela urbana — quadra ou lote — para ser uma entidade separada, implantada de maneira destacada na paisagem da cidade (fig. 2). A existência de um temenos pode, por si só, indicar a importância de um edifício, mas ela é usada mais frequentemente para reforçar e permitir a expressão mais efetiva possível do decoro.
A teoria urbanística do movimento Moderno pretendia elevar todo e qualquer edifício ao nível do temenos, mantendo sempre a pureza formal sonhada pelo arquiteto. O resultado é um caos de edifícios uniformes ou arbitrariamente variados, desprovidos de decoro, num espaço sem hierarquia onde é impossível se orientar. O método Beaux-Arts jamais permitiria que se perdesse de vista a hierarquia urbana, por mais excepcional que fosse o edifício cívico. Mesmo um ministério, para o professor Julien Guadet[4], “seria totalmente diferente se concebido na Praça da Concorde [umas das maiores praças de Paris], ou numa rua qualquer.”
O terceiro modo de distinguir o edifício monumental não encontra paralelo no vocabulário clássico, ao contrário dos dois primeiros: trata-se de compor o excepcional não como um sistema de variações da ordem usual, mas como um objeto de natureza totalmente diversa daquela arquitetura usual. É uma proposição que, segundo Léon Krier[5], contraria a unicidade do ambiente urbano, em que todos os edifícios, públicos como privados, pertencem a um sistema ordenado. Esta prática é característica do Modernismo, não apenas enquanto inserção de um objeto supostamente contemporâneo no tecido urbano tradicional, mas mesmo em composições urbanas totalmente modernistas; neste caso o contraste se dá entre a uniformidade de uma malha projetada para ser replicável em escala industrial, e algumas obras de exceção pontuando a paisagem com suas formas tão diferenciadas que qualquer replicação se constituiria em pastiche (fig. 3).
Monumentos na cidade
Ainda que frequentemente acusado de fomentar um estilo internacional antes do seu tempo, o monumento Beaux-Arts se constitui ao mesmo tempo como resposta às necessidades internas do programa e às condicionantes do contexto urbano no qual se insere. Para Guadet[6], “outro princípio geral das proporções é a consideração da vizinhança, do meio.” A facilidade com que um edifício ou um conjunto monumental acadêmico se insere no contexto é ainda mais impressionante quando pensamos na destruição de qualquer coerência no tecido urbano tradicional que a teoria da arquitetura moderna propiciou.
Além do estudo da vizinhança imediata, há também o contexto geográfico mais amplo, determinado por considerações culturais e climáticas (fig. 4). Com isso, temos a medida da integração ao meio que esta arquitetura supostamente for export preconiza na síntese teórica de Guadet[7]:
Eis ainda dois programas idênticos: mesma importância, mesmos serviços; mas um deles num departamento do norte, o outro no sul. Não apenas o desenvolvimento, mas a própria composição será totalmente diferente.
A integração entre monumento e contexto se traduzia, na prática, por uma proximidade de método entre a arquitetura utilitária e a monumental. Guadet fez questão de evidenciar essa proximidade ao iniciar o seu curso pelos elementos de composição e de arquitetura, aplicáveis tanto à arquitetura corrente quanto à excepcional, sem distinção de tipo ou programa. Até os trechos em que ele mencionava distinções entre a expressão utilitária e a monumental reforçam essa unidade, pois fica então claro que estas diferenças são simples variações no grau de riqueza e solidez dentro de um mesmo padrão.
Assim, todas as descrições dos elementos de arquitetura são aplicáveis indistintamente ao galpão e à basílica, ressalvadas algumas distinções de forma que não chegam a afetar o fundo. Uma das distinções mais significativas dizia respeito ao uso de diferentes materiais (fig. 5). Guadet[8] defendeu, por exemplo, que “a verga [peça que encima uma abertura de porta ou janela] será frequentemente em madeira ou ferro nas paredes comuns, em pedra na construção monumental”.
Responsabilidade pública da arquitetura
O corolário natural a essa integração com o contexto urbano e com o ambiente arquitetônico era o preceito de que, quanto mais importante o projeto, mais a responsabilidade do arquiteto para com o cliente e a sociedade deve levá-lo em direção à prudência. Nesse caso, o peso da tradição deveria dissuadi-lo de buscar formas fantasiosas e arbitrárias, em favor da segurança e do sucesso quase garantido que vinham com a estética canônica. E tal cânone nada mais era, como sugere Guadet[9], do que um conjunto de convenções apoiadas na tradição, ou seja, no conhecimento empírico acumulado pelas gerações que nos antecederam:
[…] quanto mais quiser despertar a ideia do monumental, mais terá que manter as proporções tradicionais no que elas terão de compatível com a sua composição. Quando, ao contrário, a fantasia e o capricho estiverem na pauta, há de se libertar desta severidade que se tornaria pedantismo. Tudo é questão de medida e de gosto.
A segunda observação acima é particularmente curiosa, mas esclarece a já mencionada hierarquia de caráter. Ela demonstra que, na teoria acadêmica, a expressão monumental não era considerada o objetivo de todo e qualquer projeto; assim como a expressão frívola e leviana do decorativismo não era considerada uma imagem apropriada à composição monumental, também a severidade da arquitetura monumental não cabia em edifícios de caráter particular (fig. 6).
A imagem pública, ou decoro, de um edifício, era um assunto que fazia parte do discurso arquitetônico desde a Antiguidade. Na linguagem clássica tal como interpretada no Renascimento, ela implicava a distinção entre a ordem de composição do edifício, taxis na nomenclatura proposta por Tzonis e Lefaivre[10], e a dignidade a ela conferida pelas ordens da arquitetura, ou gêneros de colunas clássicas. No final do século XIX, não era mais o caso, já que um número cada vez maior de palacetes privados e demais edifícios constituíam uma malha urbana indiferente a normas suntuárias explícitas ou implícitas (fig. 7).
Daí que a expressão monumental rejeitasse a exuberância em favor da severidade, mesmo que esta severidade possa se expressar de uma forma extremamente rica em detalhes escultóricos, como na ópera de Paris (fig. 8). O conceito chave do monumento acadêmico moderno deixa então de ser o ornamento clássico erudito para se constituir na grandiosidade conferida pela unidade de composição. Grandeur era então um objetivo a ser atingido para o prestígio do cliente e a fruição do público; era o próprio da arquitetura erudita e verdadeiramente importante. Guadet[11] condenava, por isso, a mera exibição de virtuosismo decorativo: “em suma, a unidade é necessária à arquitetura maior, a menor pede variedade.”
Conclusão
A verdade da arquitetura, para o arquiteto acadêmico ou Beaux-Arts, englobava tanto o respeito às propriedades mecânicas da matéria quanto à expressão do caráter do edifício como um todo, construção e composição. Corolário inevitável da verdade, a construção monumental não podia ser entendida como uma ampliação ad infinitum dos mesmos módulos invariáveis, mas como uma relação entre diversas exigências que alteravam as proporções do edifício. Mesmo a arquitetura mais grandiosa, portanto, não poderia escapar a uma certa expectativa quanto à expressão da estrutura e deveria, inclusive, beneficiar-se delas para expressar melhor a sua grandeza.
Guadet também enfatizava, no seu curso, a necessidade de um edifício ser projetado de acordo com o contexto em que ele se insere. O ponto de vista da arquitetura acadêmica era, porém, o oposto das teorias ambientalistas ou patrimoniais de hoje. Não se tratava de considerar que qualquer intervenção nova seria a priori negativa para o seu entorno e precisasse ser mascarada ou — pior ainda — diferenciada para não prejudicar a pureza do entorno. Em vez disso, era uma instrução que partia da óbvia e necessária condição de um edifício que não flutua no vazio, mas está em contato com a sua vizinhança imediata e com as expectativas culturais da sua região.
A expressão monumental da arquitetura, para os arquitetos acadêmicos no início do século XX, deveria se constituir na imagem mais rica e dignificada possível da proporção, da verdade e da inserção no contexto, temas que são igualmente aplicáveis tanto à arquitetura monumental quanto à utilitária. A distinção não é, como no modernismo, entre o tecido urbano configurado pela repetição mecanicista — no sonho de todo modernista, não apenas mecanicista como também industrializada — de formas simples e o edifício excepcional de formas arrojadas e inusitadas; no método Beaux-Arts, o que se tem é uma distinção de grau entre a boa arquitetura, aquela que o arquiteto deve fazer no dia a dia, e a arquitetura melhor, dos monumentos e dos concursos, mais rara e, por isso mesmo, mais importante. Ambas — a boa e a melhor — decorrem dos mesmos princípios de construção e composição e por isso se harmonizam no conjunto da cidade tradicional.
[1] Tratado de arquitectura, trad. M. Justino Maciel (Lisboa: IST Press, 2006), I:v:2.
[2] John Summerson, “The Mischievous Analogy”, em Heavenly Mansions (New York: Norton, 1963), 195–218.
[3] Classical Architecture: The Poetics of Order (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1986), 5.
[4] Éléments et théorie de l’architecture, vol. 1 (Paris: Aulanier, 1901), 103.
[5] Architecture : choix ou fatalité (Paris: Norma, 1996), 30.
[6] Vimos na primeira parte deste artigo como a monumentalidade é apenas um aspecto da doutrina Beaux-Arts. O ponto central desse método era, mais bem, a compatibilidade entre a arquitetura monumental e o tecido urbano corrente. (Guadet, Éléments et théorie de l’architecture, 1:143)
[7] Éléments et théorie de l’architecture, 1:106.
[8] Éléments et théorie de l’architecture, 1:262.
[9] 1:156–57.
[10] Classical Architecture.
[11] Éléments et théorie de l’architecture, 1:283.
Revisão: Camila Bernardino | Edição: Bruno Minchilo.