Viollet vs John Ruskin – Introdução às Teorias do Restauro

Para introduzi-los no mundo das teorias do Restauro, escolhemos dois nomes bem conhecidos na História da Arquitetura e da Conservação e Restauro. Dois personagens que representavam ideias completamente opostas, mas que tinham algo em comum: a admiração pelo estilo Gótico. Eles influenciaram de forma considerável os revivalistas góticos de seu tempo, mas… o que de fato pensavam eles a respeito da restauração?

 

É importante destacar que o conceito de restauração e patrimônio foi desenvolvido no decorrer da História, e as teorias foram surgindo de acordo com o crescimento da preocupação com a conservação e a consciência de que o passado deve ser valorizado e respeitado devidamente.

Eugène Emannuel Viollet-le-Duc (1814-1879) foi um grande arquiteto, teórico, escritor, desenhista e diretor de canteiros de obras. Esse é um breve resumo descritivo dos diversos talentos de sua figura tão famigerada e, para muitos, polêmica. Ele nasceu em Paris, vindo de um seio familiar que valorizava a cultura e as artes (KUHL, 2006, p.10), o que foi essencial para sua formação. Nos anos de 1830, empreendeu viagens desejando conhecer melhor a França e tal excursão aumentou o seu interesse e paixão pela arquitetura medieval, segundo KUHL.

 

Fig. 1: Viollet-le-Duc (1814-1879). ©Nadar.

 

Viollet-le-Duc iniciou seus estudos na Escola de Belas Artes de Paris, mas ele os interrompeu por acreditar que o ensino da Academia era ultrapassado, de acordo com KUHL em sua apresentação. Entretanto, começou suas atividades como arquiteto em 1830, aprendendo a prática da profissão com os arquitetos Huvé e Leclère. Mais tarde, em 1836, participou das obras de restauração em Sainte Chapelle, considerada pelo próprio Le-Duc como um laboratório experimental. Em 1844, ele também participou da restauração da Catedral de Notre Dame de Paris (XII-XIV), na qual acrescentou a flecha (torre), estátuas e detalhes que não existiam originalmente, mas que se encaixaram perfeitamente, como se sempre estivessem lá.

 

Fig. 2: Notre Dame de Paris. ©Vlada Karpovich

 

O seu conhecido verbete Restauração fazia parte do Dictionnaire Raisonné de l’Architecture Française du XIe au XVIe siécle, publicado entre 1854. Nele, Viollet-le-Duc inicia com sua famosa definição de restauro em tom dogmático: “Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento” (p. 29).

 

Todavia, o que é possível definir de fato como as ideias de Viollet-le-Duc? Além da busca pela pureza de estilo, ele acreditava que entendendo e estudando profundamente o sistema de construção, o arquiteto seria capaz de conceber um modelo ideal e aplicá-lo no estilo próprio do monumento, atentando-se para suas proporções e escala.

 

Apesar de muitos concluírem equivocadamente que o objetivo principal de Viollet-le-Duc seria apenas restabelecer o edifício ao seu estado original, isso não é o que de fato pretendia. O estado que ele desejava alcançar com a restauração de uma obra arquitetônica era o ideal, o de inteireza, que muitas vezes poderia nunca ter existido, mas que acreditava ser capaz de alcançar, devido ao seu pensamento científico e positivista que o conduzia a construir sua teoria baseada em certezas. Para ele, uma obra era como um corpo humano, que, se possuísse uma mão faltante, precisava ser completado para se tornar inteiro. Seu conhecimento era empírico e a restauração deveria ser mais racional e científica possível.

 

Logo, segundo o restaurador, o arquiteto encarregado de uma restauração deve ter pleno conhecimento dos períodos da história da arte, dos procedimentos de construção, de sua estrutura e os estilos pertencentes a cada escola para que o ato de restaurar, como uma cirurgia, seja feito com maestria. Para isso, o uso de instrumentos como a fotografia nos estudos científicos tem um papel importante também no trabalho de restauração.

 

Assim, é importante salientar que o ato de restauração para Viollet-le-Duc não era baseado apenas na sua criatividade pessoal e em seu gosto, mas era o resultado de uma investigação científica minuciosa e de levantamentos diversos e gráficos sobre o edifício. E, por isso, ele destaca que “é necessário, antes de começar, tudo buscar, tudo examinar, reunir os menores fragmentos tendo o cuidado de constatar o ponto onde foram descobertos, e somente iniciar a obra quando todos os remanescentes tiverem encontrado logicamente sua destinação e seu lugar” (p. 69).


John Ruskin (1819-1900) foi um grande romântico do século XIX, artista, escritor e crítico da arte que contribuiu imensamente para as teorias da conservação dos monumentos históricos. Ele nasceu na Inglaterra Vitoriana, num contexto de profundas transformações urbanas devido à Revolução Industrial, o que o motivou a ser crítico da cidade industrial em que se encontrava e idealizador do movimento Arts & Crafts.

 

Fig. 3: Pintura de John Ruskin, por John Everett Millais (1829–96). ©Ashmolean Museum.

 

O livro A Lâmpada da Memória é o sexto capítulo do conjunto da obra As sete lâmpadas da Arquitetura, publicada em 1849, que trata sobre temas como o Sublime, o Pitoresco, o Neogótico, Restauração e tantos outros por meio de aforismos (máximas morais). A obra foi escrita como uma crítica à arquitetura da época que estaria, segundo ele, entrando nas trevas e necessitando, assim, ser iluminada pelas lâmpadas do sacrifício, verdade, poder, beleza, vida, memória e obediência.

 

A obra de Ruskin transparece seu humanismo e crença no trabalho humano, vendo a Arquitetura como “arte que de tal forma dispõe e adorna os edifícios construídos pelo homem, para quaisquer usos, que a sua visão possa contribuir para sua saúde mental, poder e prazer” (Cap. I.I, p.8).

 

Na Lâmpada da Memória, Ruskin considera o Tempo, a História, como elemento-chave para a Sublimidade. Na sua visão, é na passagem do tempo e na longa duração que a arquitetura vai se impregnando de vida e valores humanos. Daí a importância que ele atribui à pátina de um edifício. Ela é “a mancha dourada do tempo” e sinaliza na obra a passagem deste. Por isso, é imperiosa a sua manutenção e preservação. Para tal expressão, ele expõe o seu argumento através de alguns aforismos: a arquitetura deve ser feita histórica e preservada como tal; a santidade do lar, para homens de bem; a terra é um legado inalienável, não uma propriedade; a maior glória do edifício está em sua unidade e história; e, por último: a Restauração é a pior forma de destruição.

 

Este ponto polêmico de suas ideias acerca da restauração, a sua concepção de vê-la como um malefício, decorre do fato de ele considerar impossível restituir o que já foi belo e grandioso, logo, a tentativa de fazê-lo nada mais seria do que um falseamento. Ruskin prezava pela verdade no edifício e via a restauração como uma Mentira, pois, analogicamente, é impossível ressuscitar os mortos (p.79). Ele, portanto, apresenta a conservação preventiva como solução para evitar o “mal” da restauração. No entanto, se esta última for de fato necessária, ele defende que seja feita de forma franca e encarada como aquilo que é: destruição.

 

É interessante notar que apesar de preocupar-se com a preservação do monumento para que ele seja legado a outros no futuro, Ruskin admite que sua morte será inevitável em algum momento, e até a defende em certos casos de forma contundente, para que seja uma morte honrosa, sem um substituto falso que prive o edifício das honras fúnebres da memória (p.82). Tal percepção advém do pensamento de que tais monumentos não nos pertencem e que ninguém tem o direito de tocá-los, pois competem a todas as gerações da humanidade que nos sucederão (p.83).

 

Portanto, a manutenção constante, admitindo ações de consolidações, continua sendo imperiosa para o intuito de prolongar a duração de um bem, mas não de evitar a todo custo a sua morte, e com este fim colocar em seu lugar uma mentira. Tais ações devem ser empregadas mesmo que esteticamente não sejam agradáveis, pois “é melhor uma muleta do que um membro perdido” (p.82).

 

Conclusão

 

Como é possível notar, Viollet-le-Duc e Ruskin representam posições opostas de duas teorias do restauro, as quais, mais tarde, foram alvo de tentativa de conciliação por Camillo Boito (1836-1914) e outros teóricos que discorreram sobre o tema, como Cesare Brandi (1906-1988).

 

Mas talvez você questione: de que nos serve tal conhecimento? As teorias do Restauro servem para nortear decisões na conservação e restauração do patrimônio, para que elas não sejam tomadas sem respaldo ou apenas por questões de gosto. Finalmente, por mais que existam discussões de qual seja a melhor forma de tratar um objeto histórico, cuja importância transcende interesses pessoais, é necessário ter respeito pelo bem, com objetivo de preservá-lo para que futuras gerações possam usufruí-lo. E este deve ser nosso objetivo.

Revisão do artigo: Camila Bernardino | Edição do artigo: Robertha Silveira

Referências Bibliográficas

 

RUSKIN, John. A lâmpada da memória. Tradução e Apresentação: Maria Lucia Brassan Pinheiro; revisão Beatriz e Gladys Mugayar Kuhl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008.

VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração; apresentação e tradução Beatriz Mugayar Kuhl; revisão Renata Maria Parreira Cordeiro. – 4. ed. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006. – (Artes & Ofícios;1)

OLIVEIRA, Mário Mendonça de. Viollet-le-Duc e o restauro de Notre-Dame / Mário Mendonça de Oliveira, Cybèle Celestino Santiago. – 2. ed. -. Salvador : EDUFBA, 2019.

Revisão do artigo: Camila Bernardino | Edição do artigo: Robertha Silveira

Sobre o autor:

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Késia Almeida

Késia Almeida é formada em Arquitetura e Urbanismo pela Unime Lauro de Freitas, Especialista em História da Arte e, atualmente, está finalizando o Mestrado em Conservação e Restauro pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Há três anos, ela atua no projeto de restauração do Palacete Tira-Chapéu, localizado no Centro Histórico de Salvador, contribuindo para a preservação do patrimônio cultural da cidade. Além disso, Késia é diretora do Departamento de Patrimônio e Conservação do IBAT. Desde 2018, Késia possui o perfil no Instagram "Histarq", dedicado à divulgação da história da arquitetura e da arte, onde também compartilha e-books e ministra palestras no meio acadêmico voltadas a esses temas.